domingo, abril 16, 2006

A última ceia

Durante as festas de fim-de-ano na Espanha fui muitíssimo bem alimentado. Obriguei-me a provar de todas as delícias locais em quantidades que fizeram meu avô comentar mais de uma vez que eu estava "passando necessidade na Austrália".

Hoje foi meu último turno, de 9 às 23h (double shift), no Bourbon e, se trabalhando como chef Seu Renan achou que eu não comia por aqui, agora então vai piorar.

Além de comer o dia inteiro, roubar cervejas do bar, fracassar em um bolo de cenoura e tirar um cochilo na discoteca, fiz uma retrospectiva mental dos meus quase 7 meses nesse emprego. Cheguei a conclusão de que foram as semanas de 60 horas, e não o salário "ó", que me fizeram sair de lá. Claro que pode ser somente a teoria da dissonância cognitiva me fazendo criar justificativas para o outro lado da balança.

De uma maneira ou de outra, o pequeno Bichala conseguiu me irritar até o último dia. Como já aceitei que sou implicante dei vários, muitos, descontos para o "sef" que, descobri, não irrita só a mim. Ele é daquelas pessoas que tomam um papel da sua mão para ler, páram no meio do caminho para prestar atenção na sua conversa ou tão somente têm uma dicção irritante (ele faz os três). E é teimoso! como é teimoso o baixinho. Ontem mesmo eu vi ele despejar quase um litro de creme de leite para uma porção de mexilhões e chamei sua atenção. "Nããão - é assim mesmo que faz" foi a resposta. Até estava rindo disso com o Vanderley que imaginou como ele deve irritar a noiva:

- Bichala, aí não, Bichala. Aí é o cu, Bichala.
- Não, não. Não é o cu não, peraí um pouquinho, você vai ver.
- Bichala, eu tô dizendo que é o cu. O cu é meu Bichala!

Assim ele é: teimoso. Felizmente a figura não estava presente hoje, que foi até um turno meio chato se comparado ao de ontem. De quinta para sexta-feira os Australianos encheram a lata, colaborando para um almoço tranquilíssimo. Deu para ver os últimos guerreiros na boate vizinha, o Empire, assistindo os bombeiros que chegavam para conferir mais um alarme falso de incêndio. O melhor da cena era o bêbado com o celular numa mão e o kebab na outra, tentando fotografar a ação. Só tomando todas mesmo para achar que uma foto dos bombeiros é legal. Numa boa, tem bombeiro respondendo a alarme falso a cada cinco minutos. São mais precisos que os ônibus da cidade.

Na noite do meu penúltimo dia também tivemos bombeiros. Não sei por que cargas d'água eu estava fazendo o grill naquela noite mas por volta das 20h começou a ficar movimentado e o Vanderley foi até o frigorífico buscar uma porção de alcatra pra mim. Voltou gritando "water! water! water!" hahaha. Um fumacê comparável aos que o alemãozinho produz com sua máquina de fumaça, alarme de incêndio tocando e bombeiros na cozinha em cerca de 3 minutos (pra receber os 800 dólares da multa eu chegava em menos de 2). Tudo acabado, vem um dos gerentes, o Paul, falar comigo (a "otoridade" na cozinha geralmente é quem está no grill):

- Quem estava fumando lá atrás?
- Não sei.
- Como não sabe? São vocês na cozinha. Quem fuma lá atrás são vocês da cozinha.

Tá vendo só? "Vocês da cozinha". Eu já desconfiava que "nós da cozinha" éramos um grupo a parte, levando as punições em conjunto com o pessoal do bar, mas ficando de fora das bocadas. Falei pro Paul que eu não fumo, o Vanderley não fuma e o Bichala não fuma. Na verdade o pequeno chef fuma, sim, e desconfio que foi ele quem tascou fogo na lixeira. Mas tirei o mala da fogueira pra não engolir desaforo: "agora dá licença que nós da cozinha estamos ocupados". Logo o Paul, que decepção! eu até gostava do cara - ele me lembra de quando eu era jovem e estúpido.

Hoje, depois de limpar a cozinha, saí à francesa, meio que sem despedir de ninguém. Não foi por mal - a casa estava cheia, todo mundo ocupado - não vou ficar interrompendo pra dizer "olha, estou indo, é meu último dia". A bem da verdade até esbarrei com o Monkey (o cara é um dos gerentes da casa e se intitula "macaco", mesmo sem ser preto), que não parou pra falar comigo e eu também não fiz questão porque o sujeito é uma mala: ex-usuário de speed, teve um infarto, parou com as drogas e hoje em dia faz a cabeça enchendo o saco da rapaziada. Dia desses vou lá e falo com quem me importa; tenho mesmo que ir buscar minhas facas e uniforme.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bom descanso, boa páscoa e parabéns pelo novo emprego!