Cha-cha-cha-changes

O mais dificil de morar em albergues, ao menos para mim, tem sido a constante adaptacao exigida dos praticantes deste tipo de turismo. O ser humano, dizem, se adapta a tudo e consegue, de uma forma ou de outra, levar sua vida adiante (as vezes nao muito adiante mas enfim). Basta ver os exemplos de populacoes submetidas a poderosos como Idi Amin, Torquemada e Vlad o impalador. Adaptacao - a chave do sucesso.

Outro dia minha adaptabilidade foi colocada a prova (eu ia dizer "posta" a prova mas nao estou certo se isso existe). Num albergue voce tem seu circulo de amizades, pessoas com quem voce se identifica e acaba gostando de ter ao redor (nao sei se alguem gostava do sueco mas temos sentido sua falta); essas pessoas um dia se vao e outras vem em seu lugar. Tenho tido sorte nesse ponto porque os amigos que fiz vao ficar ate dezembro e outros indefinidamente, tal qual moi. Tambem tive sorte no meu quarto, com hospedes conscientes das outras pessoas. Exceto pelo viadinho do alemao que dorme no beliche em cima de mim e que se mexe a noite toda, fazendo um barulho infernal - mas, como todo ser humano, me adaptei a isso tambem. Ate ele chegar.

Ele chegou um dia pela manha, por volta das 10 horas, e, como tenho dormido ate as 11, fui acordado pela figura totalmente dispar do mochileiro usual. Normalmente estamos na faixa dos 18-30 enquanto ele beirava os 40 e portava uma panca que sinceramente me fez temer pelo mochileiro dormindo na cama inferior do beliche destinado a ele. Fora isso nao dei muita importancia e dormi mais um pouco antes de levantar para minha rotina matutina pre-labuta.

Nao lembro de ter comentado antes mas o colchao do albergue e daqueles envolto por plastico. Talvez para evitar os bedbugs (nao sei o nome em portugues mas acho pereba uma boa aproximacao), talvez para diminuir o estrago dos diversos bebados que devem molhar a cama durante a noite, mas o fato e que a superficie lisa torna impossivel voce se mexer sem arrancar a roupa-de-cama. O poder de adaptacao inerente ao ser humano me permitiu desenvolver uma tecnica que tolera encontrar uma posicao confortavel durante a noite sem ter que re-arrumar a cama a cada tentativa. Tenho desenvolvido varias dessas tecnicas para burlar inumeras pequenas molestias da vida em albergues. Mas nada havia de me preparar para o que me esperava.

Voltando do trabalho entrei no quarto e o odor me atingiu como um soco no nariz. Quente e umido, mais impressionante que sua robustez era o semblante sereno das pessoas no quarto - todos estavam presentes (somos 6) e ninguem parecia se importar com a nuvem de alho e cebola que pairava no ar. O odor me permitiu especular a origem dele, ate entao desconhecida. Mais uma vez os temperos da India me colocavam em maus lencois, desta vez literalmente. Eu nao acreditava que em apenas 12 horas ele havia conseguido impregnar o quarto daquela forma. Tal eficiencia me fez desconfiar se aquela atmosfera o fazia sentir-se perto de casa. Nao havia duvida da origem do cheiro: o alemao viadinho, o alemao vanilla e o casal alemao ja estavam la ha alguns dias, sem qualquer alteracao perceptivel na biosfera do quarto 10.

Lembrei do meu querido tio, que na sua juventude trabalhou na Arisco, onde durante todo o dia era impregnado pelos odores de alho e cebola da fabrica. Dizem que depois do expediente seu cabelo e roupa exalavam um cheiro tao forte que era possivel antecipar sua chegada nos bares da cidade. Felizmente nao tenho cabelo e as roupas puderam ser exorcizadas com uma dosagem extra de sabao em po.

Nao vou relatar o resto da minha triste historia mas concedo que tive de reverter minha usual posicao na cama de forma que minha cabeca e, mais importante, meu nariz, ficassem perto da janela. Tais obices me impediram de usar as avancadas tecnicas anti-desarrumacao de cama, contribuindo para a mais miseravel noite que passei no Forbes Terrace. Felizmente no dia seguinte vim para Cairns e no meu regresso espero que a maquina de odores ja tenha partido.

Por hora e isso. Estou me divertindo horrores (lendo a frase achei esse adjetivo extremamente gay mas vou deixar para minha avo nao me acusar de preconceituoso) aqui no norte. Estou devendo fotos, eu sei, mas acreditem se quiser: o CD com as fotos da viagem esta preso no computador do cyber cafe ao lado, por falta de luz.

Ch-ch-changes
Just gonna have to be a different man
Time may change me
But I can’t trace time